Educação judaica no Brasil
Revista Shalom (nº 97, ano VIII), seu novo diretor, prof. Jaime Pinsky, proferiu palestra sobre educação judaica no Brasil.


Dizem que o uso do cachimbo deixa a boca torta. Isso quer dizer, em outras palavras, que todo mundo tem a sua distorção profissional. Eu, como historiador, tenho a minha. Não consigo depreender o mundo senão dentro da perspectiva histórica, não consigo entender as atitudes sóciais sem encará-las sob um prisma histórico. Não consigo entender até certas atitudes individuais a não ser que sejam pensadas em termos retrospectivos; o que está na história desse indivíduo, qual a soma de experiências históricas sofridas por esse indivíduo, em termos de história, em termos de gerações, para fazer com que ele aja dessa forma. O judeu, evidentemente, não pode ser explicado apenas a nível psicológico. Ele tem que ser explicado e compreendido a nível histórico. Essa é a minha distorção, aquela que pretendo apresentar agora. A grande questão que se levanta é a seguinte: por que uma escola judaica? Qual o objetivo de uma escola judaica? Para que uma escola judaica se existem escolas muito mais objetivas (com o perdão do trocadilho) em termos de preparar o aluno para um vestibular? Por que uma escola judaica se há escolas gratuitas? Por que uma escola judaica que custa, obriga a criança a permanecer na escola um grande número de horas, obrigando também a formação de um corpo docente especial? Por que uma escola judaica que obriga a comissão de pais a um esforço enorme? Qual o sentido dela? Eu acredito que a escola judaica tem sentido dentro de uma realidade que precisa ser definida e colocada com bastante precisão.
            O Renascença não é apenas uma escola judaica. É uma escola judaica no Brasil. Essa caracterização é muito importante e precisa se abordada de início.
            Esquecer essa realidade seria dificultar o nosso nível de comunicação com o aluno. Para compreender uma escola judaica, é preciso compreender o que ela vem representando e o que é essa comunidade que essa escola deve representar.
            Falar de judeus no Brasil, então. Mas falar de judeus no Brasil, segundo alguns, que ainda acham que o mundo se divide entre os bons e os maus, sendo que os bons somos nós, seria começar falando do nosso passado histórico. E começaríamos a colonização do Brasil com os judeus, evidentemente e provavelmente com Fernando de Noronha. Fernando de Noronha foi um tipo muito curioso: era um cristão novo, que pela primeira vez alugou o Brasil. Os portugueses não tinham interesse específico no Brasil, não tinham encontrado ouro, e arrendaram o Brasil. Então vamos encontrar publicações judaicas muito orgulhosas deste fato, argumentando com isso que nós judeus estamos arraigados ao Brasil O que é bastante discutível, visto que Fernando de Noronha não era judeu e sim cristão-novo. Por que se cristão-novo fosse judeu, seria chamado de judeu e não de cristão-novo. Mas Fernando de Noronha parece que teve os seus fãs, pois existe uma ilha com seu nome. Aliás, uma ilha muito curiosa, porque antigamente era uma ilha de presos políticos e, hoje em dia, a Embratur está interessada nela. O que dá uma simbiose curiosa e bem tropical entre DOPS e Embratur.
            Muitos cristãos novos seguiram-se a Noronha. Mas só a partir da colonização holandesa, o Brasil passa a ter uma comunidade judaica verdadeira. Numericamente pouco expressiva no entanto, economicamente e principalmente em termos culturais era extremamente judaica. Tão judaica a ponto de ter trazido para cá o primeiro rabino: Isaac Aboab da Fonseca, no início do século XVII. Como vocês podem ver ele não era askenazi...
            Para tentar compreender a colonização judaica recente, do início do século para cá, teríamos fatalmente que procurar entender a realidade brasileira em que esta colonização se deu. A vinda de judeus não se deu no vazio. Nós sabemos, por exemplo, porque é que o judeu saiu dos países de origem. Quais as condições objetivas que ele encontrou aqui para se desenvolver? O judeu encontrou São Paulo, no início do século, engatinhando em suas experiências industriais; a abertura dessas indústrias atrai uma mão de obra de campo. No campo, essa mão de obra não sentia necessidade de se vestir porque lá, ao contrário dos filmes americanos, não se usa blue-jeans descoradas e camisas da University of California. Na cidade, essas pessoas têm que usar roupas. Os judeus chegando a São Paulo, vão se estabelecer em dois setores: primeiro, no setor que os próprios judeus chamam – naquela auto-gozação bem à la Sholem Aleichem – a indústria de schmates. É que havia realmente um vazio na confecção de roupas. Em segundo lugar, não havendo um sistema de distribuição de mercadorias na cidade, o judeu vai vender de porta em porta.
            Dirão alguns que vieram grupos de outras nacionalidades que não foram desempenhar função no comércio. Verdade. Mas isso não diminui a importância das condições objetivas. Por outro lado, é preciso frisar que o judeu já tinha uma tradição de comércio no shtelt, desenvolvida, sem dúvida alguma, na Idade Média.
            Ao nível econômico, então, o judeu passa a se relacionar com a sociedade ampla. Ao nível cultural, entretanto, ele está, nessa primeira fase, ligado a determinadas tradições do antigo shtetl, daquele mundo de Sholem Aleichem, em que dele desconfiava, com razão, dos não-judeus. Ele passa a viver aqui numa aparente dicotomia, numa abertura econômica, mas num enclausuramento cultural.
            Alguém já disse, e foi um historiador, que quando, na Idade Média, construíram um muro ao redor do mundo judaico, os judeus responderam construindo um outro muro dentro desse muro. Na Europa havia esses dois outros muros. Aqui, em grande parte, e o muro exterior não existia, mas o mundo interior não deixou de existir, não podia ser destruído de um momento para outro. E é falso o jovem querer exigir do pai que destrua esse muro que ele construiu por causa da realidade européia.
            Essa dicotomia é muito importante: o judeu que acelera o progresso do Brasil ao nível cultural é um enclausurado. Começa então a criar aqui as instituições que ele valoriza na Europa. A vida cultural fica centralizada em torno, evidentemente, da sinagoga. É fundamental a importância dessas sinagogas. Criam-se pequenas salas em primeiro lugar, onde os homens se reúnem. Depois constróem-se sinagogas nos padrões da Europa Oriental. Com o tempo, surge uma sofisticação e começa-se a construir sinagogas com característica físicas diferentes. Vejam uma diferenciação de uma sinagoga como o Talmud Tora, o Beit-El de um lado, e a CIP e a sinagoga de Bela Cintra de outro. Há evidentemente uma diferença de perspectiva.
            Surge o problema educacional: “eu quero educar meu filho dentro dos padrões que eu considero válidos. Então eu coloco meu filho junto a uma Sinagoga”. E se formos verificar quase todas as escolas judaicas estão ligadas a uma sinagoga. Algumas, depois, desligam-se delas, mas outras, até hoje, estão ligadas.
            Essa ligação com o ensino religioso foi um momento histórico extremamente importante para a coletividade judaica de São Paulo.
            Posteriormente, as coisas vão se transformando. Os relacionamentos com os meios de produção, o relacionamento econômico dos judeus em São Paulo, fazem com que eles criem determinadas posturas características daquele mundo cultural que eles possuíam. Então dirá alguém que eles se tornaram menos judeus. Um sociólogo paulista, prof. Henrique Rattner, afirma que existem judeus que apenas se identificam com o judaísmo ao nível de um clube judeu. Há judeus que são os judeus gastronômicos, que se identificam com o judaísmo através do gefilte fish, por exemplo, eo gefilte fish da mãe, porque a esposa não faz igual...
            Há os judeus que se identificam ao nível puramente religioso. E há os judeus que se identificam ao nível nacional não sionista. Enfim, há uma gama muito grande de identificação. Mas o que nos interessa é algo mais praxista.
            Os judeus aos poucos, vão adquirindo comportamentos diferentes do judaísmo tradicional. O judaísmo que tem como um dos seus valores fundamentais, na Europa Oriental, a frugalidade, a simplicidade material, vai abandonando esta característica pela sofisticação material. Por outro lado, a complexidade intelectual dos judeus vai cedendo lugar a uma simplicidade intelectual. E o judeu complexo intelectualmente, torna-se um técnico. O judeu abandona a tradição do estudo de uma forma bastante expressiva.
            Vocês vão protestar: não, os judeus estudam. Segundo pesquisas de 1969 – as atuais devem dar números bem maiores – 80% dos rapazes em idade universitária freqüentam faculdade 50 % das moças idem. Como sabemos que em 1968, 1% da população brasileira em idade universitária freqüentava universidades, vamos chegar à conclusão, tirando a média entre 80 e 50, dá 65 vezes mais intelectual que os demais brasileiros...
            Claro, é um cálculo desonesto. Em primeiro lugar, porque o judeu evidentemente passa a representar determinada faixa econômica e muda o seu comportamento não porque ele é judeu, mas porque ele passa a pertencer a essa faixa.
            Se 65% da população brasileira pertence à classe média baixa e baixa e se 65% da população judaica de São Paulo pertence à classe média alta e alta, então temos uma flagrante pirâmide invertida, no dizer do nosso velho mestre Borochov com relação à característica do judeu dentro da sociedade mais ampla.
            Bem, mas faculdade. O jovem estuda ou não estuda? Sim, ele estuda. Mas o que ele estuda? O que nós dizemos para os nossos filhos? “Filho, esse negócio de fazer Física, História, uma faculdade de Filosofia, isso você faz se tiver tempos, depois de terminar a faculdade. Quem sabe tua mulher faz depois de casada – aliás está muito na moda – e ela te explica algumas coisas. Que isso não é muito difícil. Agora você faz uma faculdade séria: vá ser engenheiro, vá ser médico, administrador de empresas.” E querem uma dica? Estudem turismo...
            Quando nós, os pais, dizemos isso aos nossos filhos, estamos dando recomendações com características das tradições judaicas? Não. A tradição judaica era o estudo pelo conhecimento, para o desenvolvimento do homem. Para ele melhorar como homem, para ele, na expressão dos nossos filósofos judeus, tender a Deus.
            A característica do estudo para o qual encaminhamos os nossos filhos é um estudo pragmático, é um investimento. “Filho, hoje eu tenho condição econômica, amanhã não sei. Estudando, garante o futuro.”
            Nós não encaramos a educação do nosso filho como preparação do indivíduo para ele crescer como homem. Encaramo-lo como um investimento.
            Voltando ao que disse no começo: se o nosso objetivo era apenas era preparar nossos filhos para as faculdades, realmente o Renascença não te razão de ser. Se nós queremos algo mais, se nós queremos que, junto com essa preparação, tenhamos possibilidades de dar uma educação de judaísmo, no seu sentido mais amplo, então o Renascença sim é necessário e não apenas necessário: ele é obrigatório. Daí uma escola como a nossa se torna uma necessidade social que transcende até o próprio judaísmo.
            Porque uma escola tem dois objetivos: 1) transmitir valores da sociedade adulta. Se a escola ficar nisso, pode ser uma escola tecnicamente boa, de bom nome, mas não uma grande escola. Para se tornar uma grande escola, ela tem que preencher o segundo requisito: 2) ela tem que ser renovadora. Crítica. Pensante. Pesquisadora. Ela tem que criar cultura e não apenas transmitir esses valores.
            Nesse sentido, nós judeus estamos muito à vontade. Porque os valores essenciais no judaísmo se dão perfeitamente com esses objetivos. Porque o judaísmo é crítico. Desde a Antiguidade, não se afirmava muita coisa: discutia-se muita coisa. Ainda hoje se discute as coisas da Bíblia. O judaísmo, no decorrer de toda a história, foi sempre discutido. Os judeus sempre discutiam aquilo que existia no mundo em que eles viviam.
            Judaísmo em essência não pode ser confundido com judaísmo acidental. Ser judeu acidental é ter um comportamento que não está na moda em determinadas faixas de judeus. Se está na moda ser sócio do clube X, isso é ser judeu? Mas não e é judaísmo na essência. Fazer barmitzvot maravilhosas no Torres (ou o Torres já saiu da moda?) é ser judeu acidental.
            Ser judeu na sua essência é ter uma postura crítica com relação aos valores do mundo e da sociedade em que vivemos. Aceitá-los na medida em que forem discutidos, refletidos, pensados. Judaísmo é não abaixar a cabeça e dizer amém. Curvando-nos, estaríamos eticamente antes dos profetas. E pelo menos historicamente nós estamos depois deles...
            Nós no Renascença, e eu falo em nome de toda equipe, pretendemos uma coisa muito simples: dar continuidade ao processo que começou na pedra lascada e se desenvolveu no processo histórico. Nós pretendemos que as coisas progridam. Não que elas regridam. Aceitar, simplesmente, é regredir. Ou se progride, ou se regride: não há estagnação.