Mesmo tendo efeitos
devastadores, a humanidade não acredita que a Covid-19 decretará o fim do
mundo. Tanto é que já começamos a especular sobre o que vai mudar no “day after”,
assim que nos livrarmos da pandemia.
Geralmente, não sou de
arriscar previsões: nós, os historiadores, no máximo tentamos
adivinhar o que já aconteceu. E mesmo sobre isso temos opiniões diferentes...
Mas, sobre o “dia seguinte” talvez seja importante refletir. Estamos apostando
muito alto, e é possível que venhamos a ter grandes desilusões. Lidar com a
realidade é sempre difícil, particularmente neste momento, em que nos sentimos
fragilizados. Idealizar o futuro é uma forma de manter a sanidade, mas
construir castelos de areia pode ser mais perigoso ainda para nossa saúde
mental.
O tal “dia seguinte” só vai
acontecer se e quando tivermos um remédio confiável ou a vacina. Atrás dela correm
dezenas de laboratórios, em muitos países, de ingleses a russos, de americanos
a chineses. Segundo especialistas, as vacinas serão muito diferentes, desde
aquelas produzidas de forma mais tradicional, como a chinesa feita em parceria
com o Instituto Butantan, até outras com tecnologia
mais sofisticada, como a inglesa, passando pela israelense, que promete ser
oral e não injetável. Mas elas não existem ainda, embora cientistas e médicos
com muita credibilidade achem que as vacinas estarão prontas para serem
aplicadas pouco antes do carnaval (o que, do ponto de vista mercadológico,
seria algo glorioso e oportuno).
De uma forma ou de outra,
parece que o tal dia seguinte só acontecerá no próximo ano. Até lá teremos que
conviver com o medo da contaminação. Vamos continuar olhar com desconfiança
para qualquer um que cruzar conosco sem máscara, vamos temer aquele resfriado e
aquela dor de garganta. Um simples espirro nos fará correr atrás do termômetro
para aferir a febre. Continuaremos com o novo hábito de cheirar a comida para
conferir se não perdemos o olfato, e degustá-la lentamente para estarmos
seguros de que continuamos sentindo o gosto das coisas. Os que têm o que temer, esses talvez estejam, agora mesmo, checando os
arquivos, rasgando e queimando documentos e fotos, destruindo pen-drives,
atirando antigos celulares no mar e apagando memórias dos computadores. Afinal,
mesmo mortos, eles não querem correr o risco de ter situações e relações
impróprias devassadas.
Sim, mas e o “day after”?
Temo desapontar o leitor: não acontecerá nada. Nadinha. Necas. Na melhor das
hipóteses, talvez no dia seguinte àquele em que toda a humanidade seja
vacinada, em que a poção milagrosa produzida pelos cientistas seja injetada no
braço de sete e tanto bilhões de habitantes deste planeta erradio, talvez nesse
dia e nos seguintes a humanidade seja diferente do que é hoje. Talvez nesses
dias (vá lá, uma semana) nós nos sintamos irmanados aos coreanos (até aos do
norte), aos esquimós, aos bosquímanos, a todos os negros e aos brancos, aos
homens e às mulheres, aos ricos e aos pobres do mundo todo. Talvez nesses dias
a gente se sinta como se tivesse escapado, junto com todos os demais habitantes
do Planeta, de um perigo imenso, de um risco sem tamanho, perigo de destruição
total. Talvez esse sentimento nos irmane, nos faça
perceber que estamos juntos, queiramos ou não, que temos de cuidar deste ponto
perdido do Universo, que, afinal de contas, é nossa casa, limpá-lo,
preservá-lo, mantê-lo saudável, pelo menos no que depender de nós. Pode ser
(apenas pode ser, não sei ao certo) que, durante uma semana a gente perceba que
é ridículo, idiota e primário viver cutucando um ao
outro, ameaçando o vizinho, destruindo sua casa, invadindo sua horta, matando
seu cão, sua mulher, seus filhos, jogando sal na terra em volta da casa dele
para que nunca mais cresça planta alguma em suas terras.
Talvez a gente, durante essa
semana, perceba no coração um estranho e inusitado sentimento de fraternidade,
uma emoção rara (e até gostosa), mas muito ameaçadora, pois nos coloca
distantes de nossas armas e de nossos escudos. Essa emoção nos fragiliza, pois
não pede por armas e violência, mas por solidariedade e conforto. Essa emoção
nos ameaça porque não sabemos abraçar de verdade, nem acreditar no próximo, nem
dividir o que temos, mesmo que esteja sobrando.
Mas, se tudo correr bem,
esse sentimento durará, no máximo, uma semana. Depois voltaremos a ser como
sempre, a ser nós mesmos. E nos esqueceremos de tudo o
que passamos. E a normalidade pairará novamente sobre a Terra.