Jaime Pinsky
Historiador, doutor e livre docente da USP, professor titular da Unicamp, organizador e coautor de Novos Combates pela História, Editora Contexto.
Durante muitos séculos as sociedades humanas foram formadas, fundamentalmente, por coletores-caçadores. Eram grupos pequenos que não tinham residência fixa. Ficavam algum tempo em um local, coletavam frutas, raízes e plantas e caçavam animais de porte diverso para obterem proteína. Os estudiosos estão revendo concepções preconceituosas que havia a respeito desses grupos, que se desenvolveram em quase todos os rincões do Planeta. Acreditava-se que seriam sociedades primitivas, nômades, que passavam fome e não sabiam se defender. Hoje se sabe que muitas delas tinham uma organização social sofisticada, consumiam dietas bem mais consistentes do que a dos agricultores, e possuíam um conhecimento profundo a respeito dos produtos utilizados para seu sustento. Coletar e caçar não eram coisa para amadores. A atividade exigia grande especialização. Quais as raízes comestíveis, quais as que não se deve comer? Que tipo de cogumelo satisfaz o paladar, quais os venenosos? Chás devem ser preparados com quais “matinhos”, uma vez que todos poderiam dar a impressão de serem semelhantes, aos olhos leigos? Qual é o período em que cada vegetal se torna mais adequados para a alimentação, nem passados e duros, nem imaturos?
Questões como essas eram fundamentais para a sobrevivência do grupo. As respostas a elas foram construídas lentamente pelo conjunto dos membros da tribo (e, eventualmente, por meio do intercâmbio cultural com outros grupos). Observe-se que a passagem do saber não se dava de pai para filho, ou de mãe para filha, mas de especialista para aprendiz. Em outras palavras, há mais de 10 mil anos as sociedades humanas já se organizavam para poder transmitir conhecimento, cultura. Grupos mais organizados realizavam a passagem melhor, com mais precisão. A cada geração podiam ocorrer acréscimos, uma vez que o ponto de partida dos jovens era o saber transmitido por especialistas. Graças a esse processo de acúmulo de saber os grupos mais bem organizados tinham mais chance de sobreviver, por ter instrumentos adequados para explorar adequadamente os bens oferecidos pela natureza.
A transmissão cultural não era, portanto, uma questão marginal, secundária, mas vital. E, embora nosso país não se dê conta disso, continua sendo. Não se pode esquecer que a principal diferença entre as organizações sociais de humanos e de quaisquer outros animais (incluindo formigas, abelhas, golfinhos, macacos e todos os demais) é que somos os únicos capazes de produzir, sistematizar, transmitir e consumir cultura. Qualquer produção cultural ocorrida em qualquer parte do mundo, seja na área artística ou científica, pode ficar, em questão de segundos, à disposição de toda a humanidade. Para selecionar, organizar e transmitir o conhecimento é necessária a colaboração de um técnico altamente especializado, o professor.
É isso mesmo. Da mesma forma que ocorria em outros tempos, em outras sociedades, precisamos dos professores. Teria sido pouco inteligente se, nas sociedades coletoras-caçadoras não se aproveitasse devidamente o saber dos especialistas, seja no que se refere a folhas para chás curativos e estimulantes, seja nas técnicas de caça, na fabricação de lanças e flechas para abater animais, ou no simples desenvolvimento de formas para alcançar frutos em galhos distantes sem fazer com que arrebentem no chão. Quem ensinava era um especialista, um professor, que conhecia bem seu objeto.
Nas sociedades modernas, como a nossa, o saber se tornou muito mais especializado. Não é razoável, nem se deve exigir que pais sejam encarregados dessa transmissão cultural. Pais podem e devem passar valores caros à sua família, saberes específicos que considerem importantes, mas não podem substituir um professor de Matemática, de Ciências, ou de História. Eles não têm condições de fazê-lo porque lhes faltam tempo, conhecimento e método de ensino. Mais do que em qualquer outro momento da História, agora é importante contar com o professor para transmitir saberes. Um professor atualizado, valorizado, responsável. Um professor que não se curve a ideologias de um ou outro governo. Um professor digno, que não transforme sua cátedra em palanque. Um professor que seja instrumento de uma política educacional de Estado, definida pela sociedade e por especialistas. Política educacional é projeto de Estado, não de Governo. Países que deram certo, em algum momento, definiram políticas de Estado, estabeleceram uma linha, e exigiram que diferentes governos cuidassem de segui-la.
O caminho a seguir é evidente.