Na Idade Média, grande parte da Europa era cristã e essa era uma condição fundamental da sociedade. O médio prazo era estabelecido a partir de comemorações religiosas, como a Páscoa e o Natal e o curto prazo pelas badaladas dos sinos das igrejas que não registravam apenas a passagem do tempo, mas as mortes, os casamentos e os batizados, por exemplo. Foi só na Era Moderna, e mais particularmente após a divisão do cristianismo, com o surgimento de figuras como Lutero e Calvino é que se estabeleceu uma pluralidade de olhares, de formas de culto, de característica dos sacerdotes, de construção dos templos. A mudança na forma de culto implicava, por sua vez, na alteração no modo de marcar a passagem do tempo.
Quando aprendi alguma coisa sobre Reforma e Contrarreforma, ainda no antigo ginásio, imaginei que deveria caber a cada um de nós o direito e a obrigação de mudar o que estivesse errado na sociedade e resolvi estudar História, para entender melhor o que estava acontecendo e que providências eu poderia tomar para dar um jeito nelas, se estivessem erradas. Naquela época me parecia claro que, para sugerir alterações nas sociedades eu tinha a obrigação de estuda-las, compreende-las. E, evidentemente, uma obrigação maior de tentar muda-las para melhor.
Claro que, aos poucos, tomei consciência de que mudanças do porte que eu imaginava não são coisas fáceis de conceber e muito difíceis de por em prática. A complexidade de uma sociedade moderna, com interesses diversos e, frequentemente, conflitantes, exige não apenas uma plataforma de tarefas a serem postas em prática, mas talento para viabilizá-las, considerando, exatamente, o conjunto de interesses a serem compatibilizados.
De resto, nada mais distante do real, do que aquilo que parece ser real, que tentam nos apresentar como real. Exemplo concreto: parece óbvio que deveria haver uma articulação maior entre as escolas brasileiras e as universidades. Estas, com frequência, discutem profundamente o conhecimento, aprofundam-se em pesquisas, mas não têm como aplicar as verdades, ou supostas verdades, descobertas. Por outro lado, a evidente desatualização da formação dos professores (fruto de vários fatores, entre os quais a própria aceleração do ritmo de descobertas e invenções no mundo atual, dificilmente acompanhada pelas instituições de educação formal) poderia ser, pelo menos em parte, suprida pelo contato entre os mestres das escolas e os pesquisadores das instituições universitárias.
Cometi a ingenuidade de me debruçar sobre esse problema e cheguei a montar alguns projetos sobre como esse contato poderia ser desenvolvido, como as universidades federais poderiam ajudar o ensino público brasileiro fazendo com que este se torne mais consequente, atualizado e atraente para os alunos. Como isso, acreditava, poderíamos contribuir para diminuir a distancia entre a formação de alunos em algumas excelentes escolas particulares (evidentemente muito caras) e a formação de nossos alunos em escolas públicas.
Acreditando que era minha obrigação colocar essas ideias em prática busquei apresentar os projetos que havia montado a vários ministros de educação de diferentes partidos. Fui sempre bem recebido por eles e, em dois casos, com evidente entusiasmo. Diziam que a ideia era muito boa e seria implantada no Brasil. Nunca foi. Só um dos titulares da Educação foi explícito em dizer que não era uma coisa viável, pois tiraria o poder dos dirigentes municipais que eram peças fundamentais na formação de uma corrente de apoio ao governo federal, seja lá o que isso possa significar.
Enfim, viver, trabalhar no sentido de mudar as coisas para melhor no Brasil é um exercício exaustivo que implica na perda da inocência. Melhor acreditar nos experientes discípulos de Lampedusa, aqueles que pregam alterações que não mudam nada, embora projetem a falsa impressão de que vão mudar tudo. Quando lemos livros sérios sobre a formação da nação brasileira, como A sociedade perfeita (as origens da desigualdade social no Brasil), de João Fragoso, passamos a entender um pouco melhor porque somos o que somos, não o que alguns de nós desejaríamos ser. Não somos herdeiros do capitalismo comercial, somos descendentes de restos medievais. Se não soubermos quem somos, de verdade, nunca poderemos mudar, de verdade.
Jaime Pinsky é historiador, professor titular aposentado da Unicamp doutor e livre docente da USP e autor e coautor de 30 livros.