O saber precisa circular

Jornal de Minas

“O saber precisa circular”
Historiador e diretor da Editora Contexto analisa o mercado e defende projetos coletivos voltados para maior divulgação do conhecimento produzido pela universidade
                                                                                  
O historiador e professor Jaime Pinsky tem mais de 20 livros publicados, entre eles As origens do nacionalismo judaico e A escravidão no Brasil. Foi editor de revistas que marcaram época no campo das ciências sociais, como Debate & Crítica e Contexto. Fundou e dirigiu a editora da Unicamp. Em outras palavras, vive entre livros e publicações. Por isso parece compreensível que, há exatos 20 anos, entrasse de forma decidida no ramo criando a Editora Contexto. Foi além: muito mais que uma casa que edita livros, a Contexto leva a diante projeto educacional que pode ser traduzido numa linha política: fazer circular o saber. Jaime Pinsky sabe do que a universidade é capaz – depois de dar aulas na USP, Unesp e Unicamp – em termos de produzir conhecimento. Pelo mesmo motivo, conhece a tendência ao isolamento dos institutos de pesquisa, o risco da erudição excessiva, a teimosia em falar apenas aos pares em linguagem muitas vezes iniciática. Ao fundar a editora, quis atar as duas pontas do processo: produção do saber e sua distribuição a todos os setores da sociedade que, em última análise, sustenta a universidade. Em duas décadas, a Contexto construiu um catálogo que se destacam livros produzidos a partir de idéias bem definidas. Um dos diferenciais da editora é trabalhar sempre de forma articulada com as demandas do saber que vêm de pessoas interessadas, ainda que fora do universo acadêmico. Livros que são instrumentos para reflexão sobre os problemas do país e do mundo. Nesse propósito, destacam-se títulos coletivos, como História da guerras, História das mulheres no Brasil, História da cidadania e História das guerras, escritos por especialistas, mas sem peso na linguagem ou excessos de tória e jargão. Em entrevista ao Estado de Minas, Jaime Pinsky analisa o mercado editorial brasileiro.
A exemplo de outros editoras, como a Pespectiva, Paz e Terra e Civilização Brasileira, pode-se considerar a Contexto uma editora militante?
Sim. O projeto da editora nasceu da construção de que a universidade detém o saber, mas não o faz circular. O objetivo é fazer circular de forma propositiva, de modo a interagir no processo cultural e educacional brasileiro. Publicamos livros legíveis, leves na forma e profundos no conteúdo.
A editora tem características de publicar livros coletivos, como a História da cidadania e História das mulheres no Brasil, entre outros. Como são decididos os títulos e os colaboradores?
A editora, nesse sentido, tem dinâmica semelhante ao um jornal ou revista. Fazemos reuniões editoriais toda semana com a equipe de editores e avaliamos os projetos e sugestões. Somos pró-ativos em relação ao título que editamos. Depois de definido o tema, escolhemos os colaboradores, que trabalham com uma pauta, o que é um grande diferencial. Não aceitamos capítulos de livros ou artigos já escritos. Conversamos com os autores e os convencemos da idéia de que o saber precisa circular. Para criar os livros, avaliamos sempre as necessidades do mercado e da sociedade.
 Como a editora avalia essas necessidades?
Mantenho contato com a universidade, faço palestras, converso muito com pessoas. O feeling é resultado desse processo. Nossos editores têm contato com áreas especificas do conhecimento, viajam muito e procuram conhecer as necessidades dos alunos da universidades , do ensino médio, do terceiro setor.Valorizamos muito o contato com os leitores e os estimulamos a fazer uma avaliação crítica dos nossos livros. Além disso, temos relação honesta com distribuidores e livreiros, que nos ajudam a entender por que um livro, o que agrada ou desagrada o leitor de determinado título.
Qual é a durabilidade de um livro pensando para responder a uma necessidade de mercado? Ele se mantém em catálogo por quanto tempo?
Dois terços dos nossos títulos se mantêm em catálogo, alguns há 20 anos, e dando lucro. Se o livro não vender, sai do catálogo. Bom números de livros publicados no primeiro ano da editora ainda estão vivos. É claro que passam por atualização a cada nova edição. Sempre que sai uma edição atualizada a curva de vendagem aponta nitidamente para cima.
Como o senhor avalia as mudanças no mercado editorial nos últimos 20 anos?
Foram os mais atribulados da história editorial brasileira. A partir dos anos 80 não era mais possível levar a frente um editora apenas com idéias românticas. Até os anos 70, era viável a acumulação primitiva de capital que levasse à criação de uma editora. Foi a época em que os livreiros, pequenas livrarias e até donos de bancas de venda de livros em universidade criaram editoras. O mesmo processo aconteceu com intelectuais e artistas, que se organizaram em pequenos selos que, funcionavam como cooperativas. Com o fim da inflação, o mercado mudou. Antes, o ganho real era mais bancário, o livreiro ganhava no prazo. À medida que a inflação começou a ceder de forma importante, os distribuidores começaram a quebrar. O sistema é complexo. A mudança econômica e continuadas, em manter sintonia com as necessidades do mercado.
O senhor pretende editar ficção na Contexto?
Sou leitos voraz de ficção. Já cheguei mesmo a escrever ficção sob pseudônimo. De dias sou leitor de ficção e, à noite, de romances e poemas. No entanto, não tenho qualificação para examinar originais nem estrutura própria para vendas nesse segmento. Publicar ficção não está nos projetos da editora, no momento. Há um flerte, mas sem promessas de noivado ou casamento.
 
DE OLHO NO FUTURRO
João Paulo
 
A Editora contexto escolheu uma fórmula aparentemente pouco original para marcar 20 anos de atuação: publicou um livro. No entanto, o resultado demonstra que o acerto do projeto. Brasil no contexto 1987-2007, composto de artigos de autores que fazem parte do time da editora, é um que se parece com a Contexto: responde a perguntas bem colocadas, faz análises históricas sucintas, redefine problemas, e o que é melhor, traz sempre conteúdo propositivo. A idéia do organizador foi acompanhar os 20 anos de vida da editora, o que aconteceu no país em vários setores. Foram duas décadas quentes na política, economia e sociedade. Os artigos mantêm a temperatura.
O primeiro texto, de Antônio Corrêa de Lacerda, da PUC de São Paulo, analisa a política econômica a contradição entre o sucesso no controle da inflação e o fracasso na promoção do crescimento sustentado. O autor passa a limpo a trajetória de contrastes da economia capaz de bater recordes na produção agrícola e não solucionar o problema ecológico; criar condições para as multinacionais e sufocar as pequenas empresas. Para dar conta dos desequilíbrios macroeconômicos, Antônio Corrêa de Lacerda receita três frentes de atuação: resgate de capacidade de planejamento do Estado; política de substituição das importações e criação de pólos de tecnologia; e postura mais ousada na política externa.
Demétrio Magnoli analisa exatamente a política externa brasileira no período, com especial destaque para o governo Lula, em sua combinação de elementos tradicionais com releituras terceiro-mundistas, que reeditam, de certa forma, o paradigma do Brasil potência, tão ao gosto dos militares. No âmbito da política interna, Leandro Fortes mostra o descompasso de um país que avança econômica e institucionalmente, mas se mostra incapaz de superar as marcas do patrimonalismo e coronlismo que ainda dominam o jogo político.
As coordenadas mais gerais dos primeiros textos abrem o interesse para análises mais especificas, como a situação das cidades (que deixam de ser lugar de encontro para sediar o medo), da saúde (com seus equívocos em matéria de investimentos prioritários), da cultura, da nutrição, dos esportes, do comportamento e até da língua.
O artigo sobre o tema dos direitos humanos, de Marco Mondaini, professor da Universidade Federal de Pernambuco, talvez sintetize o método e a conclusão da maior parte dos trabalhos reunidos no livro. Ao localizar o distanciamento entre o Brasil legal e o real, parece sumarizar as duas últimas décadas, em que convivem o orgulho da transformação de alguns marcos legais com a continuidade dos processos históricos de fomento à desigualdade. Com um agravante: a redução da idéia de cidadania ao campo do consumo. Com isso, a própria política perde sua significação, vendida como uma mercadoria entre outras, totalmente submissa aos interesses da economia. Não basta vencer os vícios do passado, é preciso enfrentar o avanço do neoliberalismo, com sua sanha de instaurar (muito além da economia de mercado) uma sociedade de mercado.
Se há um elemento presente em todos os artigos, que pode servir como operador na leitura do diagnóstico e na terapêutica proposta pelos autores, é exatamente a necessidade de apostar na cidadania. Seja nas questões macropolíticas, seja no comportamento, na conquista de direitos e até na expressão linguagem, os últimos 20 anos escreveram uma história de conquistas institucionais, mas que nem sempre se traduziram em mudanças estruturadas na vida da sociedade. Há um aprendizado que veio junto coma democracia: a dimensão de processo e a necessidade de construção coletiva das alternativas sociais. Para isso, certamente, é fundamental fazer circular o saber.

 



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