Fanatismo retrata a face do retrocesso

Jornal da Unicamp

Entrevista concedida a Álvaro Kassab publicada no Jornal da Unicamp, Campinas, 25 a 31 de outubro de 2004.

Fanatismo retrata a face do retrocesso

Há cerca de 20 anos, o historiador e professor Jaime Pinsky coordenou uma ampla pesquisa sobre a escravidão no Litoral Norte paulista. Na hora de redigir o relatório sobre o estudo para a Fapesp, Pinsky viu-se diante de uma situação insólita: o texto não fluía, embora colocar as idéias no papel fosse um de seus fortes. O historiador deu-se conta de que deveria trilhar um novo caminho. Deixou o relatório de lado e escreveu, em uma semana, o livro Escravidão no Brasil, obra transformada em fenômeno editorial – está na casa dos 100 mil exemplares. “Achava que os livros até então tratavam a escravidão como um vice-reinado, como uma instituição”. O historiador relembra, com orgulho, que no meio de um debate com integrantes de uma comunidade negra, uma mulher pediu a palavra e disse: “Pinsky, você era negro quando escreveu este livro. Não sei como você conseguiu descrever tão de dentro essa questão”.
A partir dali, o historiador constatou que o seu “diálogo com a sociedade” era um caminho sem volta. Seguiram-se outros livros. Pela Editora Contexto, onde exerce a função de diretor editorial, Pinsky escreveu e organizou, entre outras obras, História da Cidadania, 12 faces do preconceito, Cidadania e Educação e As Primeiras Civilizações. O sucesso das publicações – algumas se tornaram obras de referência, adotadas em escolas e universidades – não significa concessão ao fácil. “Fazemos duas avaliações, quando recebemos originais: primeiramente, se têm qualidade; se aprovadas nesse quesito, vamos verificar se são viáveis, ou seja, se a sociedade e o mercado têm interesse nelas. Esta é a ordem”, diz Pinsky, que recruta seus colaboradores em universidades de excelência, onde passou boa parte de sua trajetória profissional. Depois de dar aulas na Unesp de Assis e na USP, Pinsky foi o primeiro professor titular por concurso do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH), onde permaneceu de 1975 até 1991, ano em que se aposentou.
Pinsky continua firme no propósito de “transformar informação em conhecimento, sem vulgarizá-lo”. Ele e sua mulher, a historiadora Carla Bassanezi Pinsky, coordenaram o livro Faces do fanatismo, obra na qual vários autores abordam o fanatismo sob as perpectivas religiosa, política, racista e esportiva. Na entrevista que segue, Pinsky fala dos efeitos do fanatismo – sobretudo o religioso – no mundo contemporâneo.

Jornal da Unicamp – Que avaliação o senhor faz do recrudescimento da violência provocada pelo fanatismo religioso neste início de século?
Jaime Pinsky – O fanatismo religioso, e no caso específico do muçulmano, que é o que aparece com mais força, decorre de uma deshistorização da religião muçulmana. Enquanto outras religiões foram ganhando consistência histórica, ela perdeu. O cristianismo na Idade Média, por exemplo, confundia propositadamente a religião com a política, com o Estado. Aos poucos, essa mistura vai deixando de existir. Onde há uma predominância do cristianismo, os Estados são laicos, há uma tendência à liberdade de expressão religiosa. Como, por circunstâncias, a maior parte dos países onde se pratica o islamismo acabou ficando para trás no desenvolvimento, no século 20 surgiram várias vertentes de luta para tentar ganhar esse espaço.

JU – De que maneira?
Jaime Pinsky – Alguns países tentaram o comunismo, outros tentaram o nacionalismo exacerbado, e hoje em dia tenta-se uma “saída” via exaltação religiosa. Claro que isto não é uma solução, está fadado ao fracasso. Não há como fazer com que a história volte no tempo.

JU – Nesse contexto, facções do fundamentalismo pregam a supressão das liberdades individuais. Até que ponto essa postura representa um retrocesso histórico?
Jaime Pinsky – É curioso porque, se de um lado prega-se a negação dos avanços sociais, políticos e de cidadania que foram obtidos, a partir principalmente da Revolução Francesa, por outro lado utiliza-se o que há de tecnologia mais moderna e ocidental como instrumentos de destruição.

JU – Até de arrebanhamento...
Jaime Pinsky – Exatamente. São usados radares, vídeos, televisores, bombas modernas e coisas parecidas. Há uma contradição evidente. Se eles fossem “quakers”, pessoas que negam o avanço da civilização, haveria coerência. Aqui há uma incoerência, há o uso e a negação da modernidade, dependendo das circunstâncias. Trata-se de uma posição anti-histórica. Independentemente da opinião que tenhamos sobre os Estados Unidos, não devemos confundir o fundamentalismo muçulmano com uma reação importante, historicamente, contra o poder americano.

JU – Como combater ações que preconizam inclusive o martírio?
Jaime Pinsky – A postura do fundamentalismo nega avanços básicos até em termos dos direitos das mulheres e das crianças. As mulheres, por exemplo, perdem direito à representatividade política, ao papel social que elas conseguiram conquistar no mundo e até em alguns países árabes – e não podemos confundir árabes com muçulmanos. É negado o direito de livre expressão. Trata-se de um retrocesso, pois estamos falando de povos que, há poucos séculos estavam na vanguarda da civilização e da cultura. Estudar e compreender esse movimento é muito importante. Justificar, porém, não dá. A partir de um determinado ponto, quando as sociedades são ameaçadas e todos ocidentais, sem distinção, são considerados inimigos, nós passamos de qualquer limite razoável. Tem que ficar bem claro que, se a gente aceitar que os fins justificam os meios, as melhores conquistas da civilização serão colocadas em xeque.

JU – O senhor acha que o esgotamento de ideologias colaborou para este quadro?
Jaime Pinsky – Diria que não só o esgotamento das ideologias, como também o fim das utopias. Estamos diante de uma. Há uma utopia que prega que o mundo seria melhor se fosse regrado por determinados padrões de uma das linhas radicais muçulmanas – não podemos confundir isto com o pensamento muçulmano como um todo. Nós tivemos várias utopias no século 20. E o mundo muçulmano – e o árabe em particular –, no século 20, tentou viabilizar, ao menos duas grandes utopias. Uma foi a utopia comunista – Síria e Egito, por exemplo, entraram na esfera de Moscou. Esta utopia não foi realizada, os países continuaram fora da modernidade. Tentaram, também, a utopia nacionalista – por exemplo, na Indonésia e no Egito. O que se tentou foi alcançar os países desenvolvidos por meio de saltos muito grandes. Mas foram saltos sem terra firme embaixo. O que estou querendo dizer é que o fim das ideologias anteriores criou a utopia atual, a de um retorno aos pretensos valores mais puros da religião muçulmana. Claro que esta também não vai dar em nada bom. Nem por isso deixaremos de ter outras utopias, porque não houve um equilíbrio maior no mundo.

JU – Que tipo de equilíbrio?
Jaime Pinsky – Há cem anos, era perfeitamente possível haver uma convivência de pessoas extremamente ricas e sofisticadas com pessoas que viviam no limite da sobrevivência em inúmeros países do mundo. Hoje em dia isso vai se tornando cada vez mais difícil, justamente por causa de uma das grandes contradições históricas – à medida que você avança, é preciso difundir os produtos ligados à comunicação. Televisão, a internet, e-mails, as pessoas sabem on line o que está acontecendo. Abro aqui o meu computador e sei da vida de quem eu quiser, em qualquer cidade do mundo. Tenho uma consciência existencial – isso é muito importante – da diferença entre aquilo que o outro consome e aquilo que eu consumo. Essa consciência existencial da distância entre nós é que me deixa a percepção maior das diferenças sociais e econômicas, e com uma vontade maior de conseguir consumir como o outro. Aliando isto a um processo maciço de propaganda, em que as pessoas são julgadas por sua capacidade de comprar, e não por uma eventual e abstrata capacidade de serem felizes, os excluídos desse mercado se sentem à margem da sociedade. A distância entre esses dois mundos aumentou muito hoje.

JU – Por outro lado, a atuação de países como os Estados Unidos contribui para o aumento da violência ao usar a força e desprezar fatores culturais e códigos de conduta milenares. Como resolver esse impasse?
Jaime Pinsky – O que acontece no mundo é que temos uma globalização econômica e começa a haver uma globalização cultural, mas não temos uma globalização política e nem jurídica. Hegemônico, os Estados Unidos não agem como uma Roma moderna. Roma incorporava à cidadania romana os habitantes dos territórios ocupados por ela. No início, romano era quem nascia na cidade de Roma. Aos poucos, romano passou a ser quem morava na região de Roma. Depois, naquilo que chamamos hoje de Itália. E, no final do império, o cidadão romano poderia ser um indivíduo que nascia naquilo que hoje é a Turquia ou Inglaterra. Ou seja, eles ocupavam e davam, ao mesmo tempo, a oportunidade de os indivíduos serem cidadãos. O provincianismo dos Estados Unidos é simplesmente inacreditável. Ou ele é líder ou não, para o bem ou para o mal. A atitude dos Estados Unidos é desastrosa, equivocada e sem a menor perspectiva histórica. E é claro que isso acaba confundindo todo árabe com muçulmano, acaba identificando árabes e muçulmanos com terroristas, o que é uma inverdade profundamente ofensiva. Pior: acaba jogando às vezes, nos braços dos extremistas, grupos que não queriam ser terroristas, mas que acabam, também equivocadamente, não vendo outra alternativa política para si mesmos.

JU – Até que ponto esse tipo de comportamento não fomenta a xenofobia?
Jaime Pinsky – À medida que você coloca uma separação entre o eu e o outro, ou seja, “quem não está do nosso lado está contra nós”, você acaba atribuindo ao outro todas as mazelas, todas as dificuldades pelas quais passa o mundo. Você age com o outro como se ele fosse realmente um inimigo, não um adversário, não como uma pessoa com valores e escolhas políticas diferentes. Você acaba atribuindo ao indivíduo características demoníacas. Isso foi feito em diferentes momentos da história por todo o tipo de tiranos. Stalin, por exemplo, matou milhares de pessoas só por que as imaginava inimigos políticos. A Igreja, durante séculos, mandava queimar mulheres, porque dizia que elas detinham um saber que era do demônio. A mulher era o “outro”, merecia ser queimada viva. Hitler achava que todo o indivíduo que não fosse da raça pura era o outro e não mereceria viver. A ideologia do fanatismo era tão absurda que fazia com até o mais imbecil dos “arianos” acreditasse ser intelectualmente superior a Freud ou Einstein, porque eles eram de origem judaica. A idéia de que isso pudesse passar pela cabeça de uma pessoa mostra o quão irracional é o fanatismo.

JU – Os conflitos regionais ganharam proporções estratégicas no âmbito geopolítico. O senhor é favorável à criação do Estado palestino?
Jaime Pinsky – Há mais de 10 anos escrevi um artigo na página de opinião da revista Veja, intitulado “Um lar para os palestinos”. Defendia, na época, para escândalo de muitas pessoas, que não haveria uma solução regional sem que houvesse o direito do estabelecimento do Estado palestino. Tenho muita clareza de que os Estados nacionais não são a solução dos problemas regionais. Num momento em que você constata que até mesmo países europeus acham que não são suficientemente fortes e buscam agrupar-se na Comunidade Européia, criar pequenos países como Bósnia, Timor Leste e Palestina é uma inconsistência histórica. É um absurdo, mas não se vislumbra alternativas. A única talvez fosse um governo mundial que possibilitasse governos regionais multiculturais, multiétnicos e multinacionais. Não vejo porque um Estado tenha que ter uma nação, e porque uma nação tenha que ser apenas um Estado. Aqui no Brasil ninguém entende direito o problema, porque somos uma nação e um Estado. Mas se você pegar, por exemplo, a Rússia você tem centenas de nacionalidades dentro do país. Em algumas regiões você tem problemas, na maioria, não. E isso vai ter de se resolver nos próximos anos, o mundo não vai poder existir sem isso. Mas, a curto prazo, não vejo outra solução que não seja a criação do Estado palestino. Os palestinos vão ter que pôr fim ao terrorismo, aceitar a existência do Estado independente de Israel e conviver com ele. Israel vai ter que aceitar o Estado palestino, aprender a conviver com ele e respeitar os seus vizinhos e suas fronteiras. Não existe alternativa, é a única solução.



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