O que é ser cidadão

O Popular

Entrevista para Margareth Gomes publicada no jornal O Popular, Goiânia, em 14 de agosto de 2003.
 
O que é ser cidadão?
Desemprego, fome, desinteresse pelo voto, poluição ambiental. Esses temas que já se transformaram em lugar-comum na realidade nacional têm um viés único: a ausência do cumprimento dos direitos básicos da cidadania. Uma discussão que norteia o mosaico de textos compilados no livro História da Cidadania, publicado pela Editora Contexto. A obra reúne ensaios de 24 intelectuais, entre eles o filósofo Leandro Konder, o economista Paul Singer, o historiador Osvaldo Coggiola e até um conto inédito do agora imortal Moacyr Scliar. Em entrevista ao POPULAR, um dos organizadores da obra, o historiador Jaime Pinsky, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), fala sobre o processo de deterioração da cidadania na sociedade atual.
 
            Como surgiu o projeto de editar um livro que explora o tema cidadania em suas várias vertentes históricas?
            Cidadania é uma palavra que tem sido utilizada para muita coisa. Tem até programas sensacionalistas de televisão, lojas de móveis com preço cidadão. Em São Paulo, existe até escola-cidadã, porque ensina boas maneiras aos alunos. A cidadania passou a ser usada de forma indevida. Esta é a melhor maneira de esvaziar um conceito importante. Queria recuperá-lo, trazendo a história e o desenvolvimento do conceito. O curioso é que a idéia inicial era fazer a história da cidadania no Brasil, checar obras similares. Não achei nenhuma obra de referência mundial. Será que há no Brasil uma produção intelectual, uma massa crítica suficiente para produzir um livro? Há. O livro é inédito internacionalmente e pretende interferir no debate político contemporâneo.
 
            Quais os princípios básicos que regem de fato a cidadania?
            O que é cidadão? É um indivíduo que tem basicamente três tipos de direitos: civis, à vida, de ir e vir; os direitos políticos, de votar e ser votado, associar-se de acordo com seus interesses. Quem torce pelo Goiás ou pelo Goiânia, ou quem quer fazer parte de um grupo de maçonaria ou de uma igreja. O Estado tem de permiti-los para que haja cidadania. E, finalmente, os direitos sociais, que concedem ao indivíduo o direito ao emprego, a uma remuneração, a uma aposentadoria digna. São direitos sem os quais os outros dois não funcionam na prática.
 
            Quais os aspectos da cidadania menos respeitados no País?
            Não tenho dúvidas em dizer que temos direitos políticos, direitos civis, embora haja falhas como a tortura policial. O ponto principal é a ausência dos direitos sociais. As pessoas confundem os direitos sociais com um favor. Parece que o direito a uma aposentadoria digna é um favor. Quando é um direito do indivíduo, que entra numa associação chamada Estado nacional. O pressuposto é que vá ter uma aposentadoria digna, uma velhice. Que tenha o direito ao trabalho, a uma remuneração digna.
 
            Num país de tamanhas desigualdades sociais, como estabelecer condições mínimas para o exercício da cidadania?
            As diferenças sociais em si não seriam um absurdo tão grande se o patamar mínimo fosse digno. Tenho absoluta convicção de que ninguém se incomodaria que outro ganhasse 50 vezes mais do que ele desde que tivesse um salário digno. Que permitisse o direito a várias coisas como educação, que dá direitos iguais de oportunidades. Mas temos uma escola pública sucateada. O que faz com que a maioria esmagadora não tenha a menor possibilidade de competição com aqueles que freqüentam escolas particulares de alto nível. Isso é a reprodução da desigualdade. O que o Estado tem de prover com urgência é um direito igual de oportunidades.
 
            As modernas estratégias de marketing provocam na sociedade atual um bombardeio diário de incitação ao consumo. Como fica o cidadão à margem desse universo?
            Há um processo de indução ao consumo desenfreado, sem sentido. De repente, a pessoa que ganha pouco acaba comprando um iogurte para o filho da marca x porque vê tanta propaganda na televisão que acha legal, em lugar de amentar a criança. A cidadania não implica um padrão elevado de consumo, mas o consumo de coisas fundamentais que permitam a dignidade humana. Não vamos nunca conseguir uma sociedade em que todos tenham direito ao consumo dos mesmos produtos. Entretanto, no Brasil há mais televisores do que geladeiras. Um sinal, de consumo equivocado. O Estado, além de não prover adequadamente, também não orienta as pessoas adequadamente.
 
            É possível mudar esse cenário e resgatar a cidadania social?
            Pelo processo educacional. Tem de oferecer educação de qualidade e para todos. Chamar atenção para as armadilhas do consumismo desenfreado, que nada mais é do que uma forma de manter o indivíduo de uma maneira subalterna. Exemplo, ele vai comprar o tênis, como a caseira da minha chácara, que pegou o primeiro salário e pagou um tênis de quase 300 reais. É impressionante. Falei com ela: “Nunca comprei um tênis desse preço!”. Ela respondeu: “Ah! Professor, o senhor não valoriza!”. Se você crítica é como se afirmasse para a outra pessoa que ela não tem direito a isso. É preciso um critério para separar o que é fundamental e o que não é para a vida. Não que não se tenha direito a coisas secundárias.
 
            Na década de 60, 70, as escolas repassavam valores de ética, cidadania, em aulas de educação moral e cívica. Isso acabou até por estar fortemente associado à ditadura. A proposta seguinte do governo federal era substituí-lo por aulas de noções de filosofia. O que não ocorreu. Como transmitir aos jovens noções de cidadania?
            Uma das seqüelas da ditadura militar foi que os professores ficaram com horror a tudo que fosse manifestação cívica, confundindo-a com uma manifestação favorável a um Estado militar. Temos países que não são militaristas e que têm uma ligação muito forte com símbolos nacionais: bandeira, hino, datas cívicas... Isso precisa ser repensado rapidamente no Brasil. Temos de mostrar que o País não é uma nação apenas a cada quatro anos, na Copa do Mundo. Ou a cada seis meses nos capítulos finais da novela da Globo. São os únicos momentos em que todos se unem em volta da televisão. Se cultuamos a televisão, podemos cultuar também a bandeira, o hino, símbolos da identidade. Identidade, afinal de contas, decorre da percepção de um passado histórico comum.
 
            Algumas empresas já desenvolvem projetos sociais e de proteção ao meio ambiente. Esse é um caminho para que o cidadão passe a ter mais consciência de seus direitos?
            Hoje já se começa a ter empresas cidadãs preocupadas com seus funcionários, como padrão de seu produto. É um caminho importante sim. Mas ao mesmo tempo isso mostra um vazio, a falência que existe no Estado, a quem caberia educar as pessoas. Tem de haver uma recuperação do Estado. Parar com essa palhaçada de Estado mínimo. Não tem de ser dono de siderúrgica, de hidrelétrica, como era. Sou a favor das privatizações. Mas o Estado tem de dar conta da educação, saúde, do direito ao trabalho. Criar condições para que haja emprego para todos. O que acontece é que o Estado não está cumprindo suas funções. Tanto o governo atual, quanto o anterior, está trocando os pés pelas mãos. No País, começa lentamente a se ter uma consciência da cidadania ambiental. Mas ninguém mais discute a questão do aquecimento da terra. Em São Paulo, não há inverno, apenas uma secura impressionante. A mudança climática é óbvia, o calor na cidade está insuportável. E as pessoas fingem que não existe. É um chamamento para a ação. E você está fazendo o quê?