História e memória
Jornal da USP


Em O Brasil no Contexto, a Editora Contexto comemora seus vinte anos de fundação e apresenta um importante retrato das principais transformações pelas quais o País passou nas últimas décadas.
 
MARCELLO ROLLEMBERG
 
Brasil das últimas duas décadas teve que aprender a se repaginar quase que à força. Depois de mais de 20 anos sob o tacão de generais travestidos de presidentes, o País encontrou, a partir de 1985, uma nova rota. Esse trajeto, porém, não seria sem traumas: a morte de Tancredo Neves, o presidente das esperanças de redemocratização brasileira que nunca tomou posse, bifurcou o caminho e levou ao poder seu vice, José Sarney, ex-homem de confiança justamente daqueles generais de Brasília. A partir daí, a história conta, o Brasil começou seu lento e gradual processo de redescobrir a democracia plena – o impeachment de Collor é, ao mesmo tempo, paradigma e paradoxo dessa situação –, a real estabilidade econômica – não sem os sustos do malfazejo Plano Cruzado – e ver mudanças sociais, culturais e tecnológicas darem um novo colorido à sociedade. São exatamente esses últimos 20 anos da vida brasileira – entre 1987 e 2007 – que são abordados no livro O Brasil no Contexto, lançado recentemente pela Editora Contexto. O título, mais do que um trocadilho, faz sentido e é muito pertinente: além de analisar as mudanças dessas duas décadas, o volume serve também para comemorar os dois decênios de fundação da editora, criada pelo professor titular da Unicamp Jaime Pinsky naquele turbulento e hoje já tão distante ano de 1987 (leia mais sobre a editora no texto ao lado).
O livro reúne 17 artigos dos mais variados naipes de pesquisadores, abordando os diversos aspectos de mutação da sociedade brasileira desde meados da década de 80. São textos que tratam de economia, comportamento, políticas externa e interna, jornalismo, turismo, educação e saúde, entre outros temas, assinados por nomes como Demétrio Magnoli, José Batista Natali, Márcio Porchmann, Antonio Corrêa de Lacerda, Marília Scalzo, José Aristodemo Pinotti e Leandro Fortes. É curioso ler esses textos a partir da perspectiva histórica de um passado recente que, para muitos, parece coisa distante. Digamos assim, do século passado – e é mesmo. Só que se, para aqueles com mais de 35 anos de idade os fatos abordados em O Brasil no Contexto são memória, para muitos jovens – a maioria nos bancos universitários – aquilo que é retratado nas mais de 250 páginas do livro é apenas história. Unir memória e história, então, é o principal condão desse trabalho.
Glitter e cores ácidas – Afinal, as últimas duas décadas apresentaram mudanças que poderíamos chamar de absolutamente radicais. Na política, saímos da eleição indireta que ungiu Tancredo e empossou Sarney para a liberdade do voto e a eleição de Lula – com tudo o que isso possa ter de positivo e negativo, como em qualquer eleição. Na economia, talvez tenha havido a maior reviravolta – e para o bem. Depois dos malogrados planos Cruzado I e II, José Sarney deixou a Presidência, em 1990, com o Brasil batendo a casa dos 80% de inflação – ao mês. Não havia corte de zeros que bastasse e éramos todos milionários, já que os salários eram computados em milhões de cruzados, cruzados novos, patacas, o que fosse. Collor confiscou a poupança, Zélia Cardoso de Mello dançou em todos os sentidos e o Brasil só foi se aprumar economicamente com o Plano Real. Hoje, a inflação anual está na casa de apenas um dígito. E sem riscos de apagão. Mas ainda há muitos desafios nessa área. “Permanece o desafio principal de atingir um nível de crescimento mais robusto e sustentado”, aponta Antonio Corrêa de Lacerda em seu artigo.
Mas não foi apenas nas questões macro que o Brasil se metamorfoseou. Em outros aspectos também. A comunicação e o comportamento do brasileiro sofreram fortes mudanças nas últimas décadas. Quem compra telefone celular hoje por R$ 1 não faz idéia de que, há pouco mais de dez anos, o celular tinha as dimensões de um tijolo e era quase um investimento, tão alto era seu preço. A internet engatinhava e a Grande Rede era apenas uma promessa do que viria a ser – e, hoje, é. E nos costumes, na moda, no comportamento, muita coisa mudou. Já vão longe os tempos hoje risíveis do chamado new wave, com muito glitter no rosto, cabelos espetados e roupas com cores berrantes e ácidas. Não bastava ser verde ou amarela – tinha que ser verde-limão e amarelo-ovo, quase laranja. Hoje, é a discrição que dá o tom.
O volume O Brasil no Contexto é mais do que um livro comemorativo do belo trabalho de uma editora e um compêndio sobre o nosso passado recente. É um estudo dos mais interessantes a respeito da trajetória de um País que ainda busca seu rumo mais adequado e sua verdadeira face. Ao se ler o livro da Contexto, percebe-se o quanto o Brasil já caminhou. E o quanto de trajeto ainda tem por pavimentar.
Duas décadas a serviço da cultura
Em 1987, um grupo de intelectuais de várias universidades, principalmente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), tendo à frente o professor Jaime Pinsky – que havia fundado a Editora da Unicamp, que dirigiu por quatro anos –, teve uma idéia ousada: criar uma editora que unisse agilidade operacional e veiculação do conhecimento. A ousadia se dava em várias frentes. Uma, óbvia, era a situação econômica que o Brasil vivia e que não dava muito alento para vôos como os que os professores pensavam em empreender. Outra dizia respeito ao próprio ato de se fundar uma editora em um País que, segundo o clichê, tem uma população que não lê. Esses dois senões foram exorcizados com maestria. A Editora Contexto vingou apesar da turbulência econômica e vem ajudando, nesses 20 anos, não só a formar leitores, mas a aproximar o conhecimento acadêmico do grande público, eliminando um outro problema: o de que a academia, encastelada em sua proverbial torre de marfim, dialoga apenas com seus pares e não dá bola para a sociedade laica.
“O projeto da editora sempre foi fazer circular o saber produzido pela universidade. Isso é muito importante”, afirma Jaime Pinsky. “Há editoras que imprimem livros, outras que publicam livros. Há, no entanto, uma terceira via, daquelas que realmente editam livros. É onde nos encaixamos. A intenção da Contexto é promover uma conexão entre a produção do saber e as necessidades da sociedade e do mercado. É importante que o autor veja que tem um compromisso com a sociedade”, garante.
Essa postura editorial rendeu muitos frutos à Contexto nessas duas décadas. A editora possui cerca de 300 títulos em catálogo e já ganhou vários prêmios, entre eles nove Jabuti. Mas a Contexto não pode ser considerada uma editora que publica apenas livros voltados para o público universitário. Além de não publicar teses – “Publicamos obras baseadas em teses ou dissertações”, afirma Pinsky –, a editora tem um olho fixo no mercado e no que pode interessar ao grande público leitor. Não é à toa que um de seus grandes sucessos editoriais foi Os fantasmas da Casa da Dinda, publicado a toque de caixa em 1992, no qual os jornalistas Luís Costa Pinto e Luciano Suassuna dissecavam os bastidores da casa brasiliense que servia ao mesmo tempo de residência do então presidente Fernando Collor de Mello e de QG da nomenklatura collorida


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