A trajetória de uma idéia chamada cidadania
Livro procura resgatar a história do conceito, fundamental para a discussão e a prática da democracia, que se tornou lugar-comum e corre o risco de ser esvaziado.
Em 1938, portanto pouco antes da 2.ª Guerra Mundial, Paul Valéry (1871-1945) afirmou, num texto: “Liberdade: uma destas detestáveis palavras que têm mais valor do que sentido”. Troque liberdade por cidadania – uma palavra que faz parte da mesma família - e talvez a frase fique ainda mais provocativa nos dias de hoje.
“A palavra está tão na moda que outro dia um amigo me disse: Finalmente, arrumei uma namorada cidadã; fiquei pensando o que significava isso, conta o historiador Jaime Pinsky, organizador, com sua mulher, Carla Bassanezi Pinsky, de História da Cidadania (Contexto, 592 págs.). O livro nasceu, justamente, da vontade de recuperar o sentido das coisas.
Jaime usa, na introdução ao livro, uma definição corrente do que é ser cidadão: “Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranqüila. Exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos e sociais.”
Ocorre que, claro, as coisas não são tão simples - o que justifica o trabalho. Como lembra Leandro Konder, em seu texto que trata da influência dos socialistas nos debates sobre esses direitos, a Revolução Francesa deparou-se como o problema de estabelecer os limites do direito à propriedade: uma questão que acabou levando tanto Maximilien Robespierre quanto Gracchus Babeuf a perderem a vida na guilhotina. É, portanto, preciso entender os sentidos que teve a palavra cidadania, que sentidos ela tem e quais ainda pode ter.
Colaboram na obra 24 autores, que tratam desde o que os organizadores classificaram como pré-história da cidadania - os primeiros fundamentos e formulações do conjunto de direitos que gravitam em torno da palavra - até questões de cidadania no Brasil, passando pelos alicerces criados pelas revoluções Inglesa, no século 17, Norte-americana e Francesa, no século 18, e pelo posterior processo de construção desses direitos.
Segundo Jaime, o projeto inicial era escrever uma história do conceito, fundamental para a discussão e a prática da democracia, no Brasil. Mas uma pesquisa revelou que não havia uma grande História da cidadania realizada em outros países.
Os organizadores decidiram, então, ampliar o projeto para que ela fosse uma História da cidadania no mundo ocidental, convidando vários intelectuais que atuam no País a escrever sobre as áreas em que são especialistas.
Apesar das 48 mãos que participaram, o livro não é uma simples reunião de artigos. Os autores foram pautados, tiveram de responder a questões específicas, para que a História pudesse ser lida como um todo. Houve, inclusive, casos de textos que não se enquadraram no projeto por não se aterem às preocupações históricas, e acabaram sendo excluídos do trabalho final. Nenhum, no entanto, foi retirado por divergência de opinião - o que permite, por exemplo, que o texto sobre a cidadania na Roma antiga, de Pedro Paulo Funari, professor do Departamento de História da Unicamp, enxergue a vida política da cidade-Estado com muito mais boa vontade do que o faz Carlos Zeron, professor de História Moderna da USP, no seu texto sobre a cidadania no Renascimento. As contradições internas, contudo, não chegam a ser um problema, pois é natural que autores apresentem divergências.
O livro começa com um texto sobre os hebreus, do próprio Jaime Pinsky, que discute os primeiros sinais de preocupações que hoje fazem parte do conceito. Nos livros dos profetas Isaías e Amós, Pinsky encontra trechos que qualifica “de uma atualidade surpreendente”. De Isaías, extrai, por exemplo: Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem./ Respeitai o direito, protegei o oprimido;/ fazei justiça ao órfão, defendei a viúva; já de Amós, seleciona críticas à distribuição da riqueza feitas pelo seu deus: Eu aborreço e desprezo as vossas festas; (...) Antes corra o juízo como águas e a justiça como ribeirão perene. Esses traços de cidadania faziam parte da formação cultural, por exemplo, dos socialistas utópicos, no século 19, diz Jaime.
A discussão sobre as origens da cidadania não poderia deixar de passar pelas primeiras manifestações de democracia - as cidades-Estado gregas e romanas. Ressaltando que os primeiros pensadores que se debruçaram sobre a definição do que hoje entendemos por cidadania faziam uma imagem idealizada e falsa da cidadania antiga, Norberto Luiz Guarinello, professor de História Antiga da USP, procura mostrar como a definição da cidadania, especialmente a grega, sempre se dava por meio da exclusão do outro.
Funari traça um interessante itinerário do debate em torno da cidadania em Roma. Das histórias que elenca, que passam necessariamente pelo conflito entre patrícios e plebeus, mas também pela universalidade do voto nos jogos de gladiadores (mesmo as mulheres podiam participar da decisão sobre seus destinos), ele lembra uma fábula de Fedro, em que um lobo magro se impressiona com a saúde de um cão gordo. O lobo prefere continuar a passar fome quando descobre que o cão, para se alimentar, não pode ir aonde quiser. Seja feliz a seu modo, cão; não gostaria de um trono que me tirasse a liberdade. Funari não faz a associação direta entre essa fábula e o mito de fundação de Roma: de que a cidade teria sido fundada por gêmeos amamentados por uma loba. Tal associação permitiria uma leitura sedutora, ainda que perigosa, de que os romanos se viam não só como um povo que havia deixado o mundo selvagem, mas também como um povo que havia se alimentado da liberdade dessa loba.
A discussão sobre a cidadania dos antigos permeia, como é natural, vários textos. Numa observação importante, Leandro Karnal, autor do texto sobre a Revolução Americana, afirma que, em vários sentidos, não seria puro anacronismo cobrar de atenienses e da geração de revolucionários de 1776 uma concepção de liberdade e cidadania que possuímos hoje. Havia críticas e debates sobre o comércio de escravos. Havia homens que negavam a alegada frivolidade feminina como obstáculo à participação política.
No bloco de textos sobre a cidadania no Brasil, são tratadas questões como a cidadania indígena, a organização dos quilombos, dos trabalhadores, da participação feminina e da própria história do voto no País, que, só a partir da Constituição de 1988, finalmente põe fim à limitação do voto aos alfabetizados. Há também um capítulo dedicado ao chamado terceiro setor, em que se discute o papel da organizações não-governamentais. Nele, o advogado Rubens Naves, em sua conclusão, coloca algumas questões a serem ainda respondidas: Até que ponto (o terceiro setor) depende do Estado e das empresas? Até que ponto as ONGs podem reeditar a história, já conhecida, das instituições que usam da coisa pública em benefício de pequenos grupos de poder? A crise de confiabilidade também é a da representação: as ONGs podem ser consideradas representantes legítimas dos anseios da sociedade civil? Por outro lado, a questão é também política: em que medida as ONGs, tornadas parceiras do Estado, podem exercer um controle social sobre a ação do poder público?
Por fim, a obra acaba em ficção: o último texto é do escritor Moacyr Scliar, intitulado “O Nascimento de um Cidadão”.