Cidadania: além do lugar-comum
Diário do Nordeste - Caderno 3


 
Em “História da Cidadania”, lançamento da Editora Contexto, organizado por Jaime Pisnky e Carla Bassanezi Pinsky, 24 autores empreendem, por meio de artigos acadêmicos, uma busca pela história desse conceito básico para a democracia, mas tão desgastado pela banalização
Por Dalwton Moura
            Poucos termos são tão empregados atualmente, com tantos pretensos significados e para um sem-número de propósitos quanto “cidadania”. Reclamar ao garçom da conta que veio errada, não jogar papel no chão, resmungar contra o prefeito, o governador e o presidente, participar de passeatas contra a guerra do Bush, Blair e Saddam, tudo, do micro e macro, são “ações em prol da cidadania”. Os chavões mais recorrentes sobre o tema, aliás utilizam imagens pertinentes ao universo dos conflitos bélicos. Para “defender a cidadania”, criam-se comissões. Para “resgatar a cidadania”, projetos e programas são anunciados. Com o objetivo de “revitalizar a cidadania”, e “devolver a cidadania aos excluídos”, divulgam-se conjuntos de ações, escrevem-se códigos, cartilhas e livros – em sua maioria, mais incensados que efetivamente lidos.
            Em “História da Cidadania”, os historiadores Jaime e Carla Bassanezi Pinsky organizam uma obra de referência, em que 24 intelectuais brasileiros ou aqui atuantes, discorrem sobre o tema, traçando, conforme indica o título, um panorama cronológico de conceito tão discutido e, paradoxalmente, tão pouco palpável. São textos inéditos em que articulistas como Leandro Konder, Paul Singer, Tânia Regina de Luca e Peter Demant abordam a “pré-história da cidadania”, as bases da cidadania moderna, a expansão do termo-tema e seus reflexos sobre o Brasil.
            Tanto pela concepção coletiva quanto pela difícil distinção de fronteiras temáticas, o livro traz abordagens díspares, com subtemas ou caminhos possíveis a partir do mote inicial. Direitos civis, políticos e sociais são colocados, todos em um só, como pressupostos básicos para a cidadania plena. Ao longo das quase 600 páginas de ensaios, narra-se e comenta-se o conturbado processo histórico pelo qual a civilização ocidental idealizou e conquistou, ainda que relativamente, esses direitos. O advérbio se justifica, tendo em vista o fosso que ainda separa patrícios de plebeus e estes, por sua vez de escravos.
            Quem de nós, em sã consciência, poder dizer que se enquadra (ou não) nesta ou naquela categoria? Talvez todas a um tempo, dirão alguns menos apocalípticos. Papéis alternados, típicos da pós-modernidade de tantos “eus”. No entanto, parecem ser cada vez mais reduzidos os indivíduos que verdadeiramente contam nessa história, os que de fato existem, os “cidadãos do mundo”.
            Não por acaso, alguns dos pensadores que colocaram com a obra se dedicam a discutir as primeiras noções de democracia, nas cidades-Estados de Grécia e Roma. Para Norberto Guarinello, professor de história moderna da mesma USP. Na mesma linha, para o historiador Leandro Karnal, não seria anacronismo cobrar dos atenienses conceitos de liberdade e cidadania semelhantes aos atuais.
            Já Pedro Paulo Funari, historiador da Unicamp, prefere destacar aspectos mais positivos da cidadania entre os romanos, enfatizando o desenvolvimento da democracia e das eleições. “As eleições, em Roma, constituem outro grande tesouro da cidadania. Os comícios por tribos eram muito importantes, pois elegiam questores, edis, tribunos militares e tribunos de plebe. A diferença de muitas cidades gregas, em que o direito de voto era restrito, em Roma votavam pobres e mesmo libertos”, destaca.
            O livro se inicia, porém, com um artigo do próprio co-organizador, Jaime Pinsky também professor da Unicamp, sobre os hebreus, “Os profetas sociais e o deus da cidadania”. Passada a fértil discussão sobre Grécia e Roma, Eduardo Hoonaert, historiador belga radicado no Brasil, e Carlos Zeronm avançam, respectivamente rumo às comunidades cristãs e à cidadania durante o Renascimento.
            A partir daí, Marco Mondaini, Leandro Karnal e Nilo Odalia, reconstituem os “alicerces da cidadania”, na acepção contemporânea do termo, ainda fortemente associada às revoluções modernas. O texto de Karnal, por exemplo, aborda a revolução americana sob o título “Estados Unidos, liberdade e cidadania”. Impossível não citar a ironia da América de nossos dias, não essencialmente diferente da de ontem, que condena um país à sua libertação, em nome da “liberdade”, outra palavra prenhe de usos e de difícil consenso, tal qual cidadania.
            Levando a discussão para questões mais especificas, Lenadro Konder, Paul Singer, Carla Pinsky e Peter Demant enfocam, pela ordem, o socialismo, os direitos sociais, as questões da mulher e das minorias. A qualidade de vida, associada à preocupação com o uso sustentável do meio-ambiente, merecem artigos de Rodolfo Konder e Wagner Costa Ribeiro.
            Até que, por fim, o olhar deste “História da Cidadania” chega ao Brasil, com recortes de momentos e matrizes históricas da nossa realidade. Índios, escravos e trabalhadores não podiam faltar; aqui, suscitam textos do antropólogo Mércio Pereira Comes e dos historiadores Flávio dos Santos Gomes e Tânia Regina de Luca. Entre outros artigos sobre a questão feminina, o (na)alfabetismo político e cidadania ambiental, merece destaque o texto de Rubens Naves, sobre o tão propalado “terceiro setor”.
            Naves propõe, a partir de ONGs, novas possibilidades para o exercício da cidadania, embora ponha em xeque a autonomia dessas organizações perante as esferas tradicionais, pública e privada. “Nos próximos anos, o poder público será pressionado a atender à demanda dos direitos sociais e econômicos. No Estado estratégico, a maneira de fazer isso serão as parceiras. Quando falamos em ações sociais, não temos em mente paliativos contra a miséria, mas uma transformação genuína da sociedade brasileira. Nesse sentido, é esperado que as ONGs cumpram um papel transformador, propondo novas formas de tornar as políticas públicas mais eficientes e capazes de abarcar os direitos de todos os brasileiros”, conclui.
            De modo inusitado, o livro, cuja linguagem acadêmica assume o risco de inibir o leitor em potencial, termina com um texto de ficção. Em “O Nascimento de um Cidadão”, Moacyr Scliar conta, em um tom coloquial que soa como um bálsamo para os olhos cansados de tanta seriedade, a história de um “cidadão” desempregado, sem passado e sem futuro, perdido a esquecer a família, a idade, o nome, a vida. Um fecho simbólico para as muitas reflexões despertadas pelos artigos.
            Curiosa também, em livro de tantas pretensões (ser uma obra de referência sobre cidadania, não só no Brasil, mas em âmbito ocidental), a singela, quase desapercebida dedicatória feitas pelos autores, eles mesmos ora protagonistas da aventura de uma relação interpessoal: “Ao Erik. Tomara lhe possamos entregar um mundo mais cidadão!”. Que mundo seria este? E será que os bisnetos de Erik chegarão a nele viver? O tempo com a palavra.