Conceito em construção



Resenha escrita por João Paulo publicada no jornal Estado de Minas em 05 de abril de 2003 e no jornal Correio Braziliense  em 12 de abril de 2003.
 

Livro pioneiro reúne ensaios sobre aspectos sociológicos, históricos e políticos da conquista da cidadania no mundo e no Brasil
 
         A palavra cidadania, muito mais que o conceito de cidadania, faz parte da maioria dos discursos contemporâneos que circulam em torno da questão política, econômica e social. Mas a presença ubíqua não significa clareza. Fala-se em cidadania, muitas vezes, de forma adjetiva, ilustrativa ou, no máximo, prospectiva, como algo a ser alcançado. Mas como acontece com todas as noções amplas demais, a de cidadania acabou servindo para tudo, o que é o mesmo que não ter serventia alguma. A publicação de História da Cidadania, coletânea de ensaios organizada por Jaime Pinskye Carla Bassanezi Pinsky, é um passo fundamental para mudar essa situação. Trata-se de uma obra pioneira na bibliografia mundial, pela abrangência no tratamento do tema e pela capacidade de cobrir os aspectos conceituais, filosóficos, históricos, sociais e econômicos da noção de cidadania. Um livro que serve como instrumento de provocação contemporânea da cidadania que nos falta construir.
         A recorrência a Marshall, maior referência quando se trata do conceito de cidadania em sua forma tripartite (como conquista de direitos civis, políticos e sociais), é apenas um ponto de partida. O projeto dos organizadores tem outro objetivo. Em vez de se descrever um processo de incorporação sucessiva de direitos (como Marshall fez para o caso inglês), o objetivo é traçar uma história da invenção desses direitos. Em outras palavras, não há um ponto de chegada, mas sucessivas descrições contextualizadas de lutas por ampliação desses direitos, como novos pontos de partida. Na introdução, Jaime Pinsky deixa claro seu método histórico, com especial enfoque para a mudança da dimensão de cidadania através dos tempos e entre as diversas nações do planeta, ou mesmo no interior de uma sociedade complexa. Se há uma intenção política nisso, e é bom que haja, está em servir ao mesmo tempo de denúncia de desumanização e anúncio de perspectivas de humanização possível, sobretudo para o caso brasileiro. A cidadania é o horizonte que mira esta distinção.
         O livro traz apenas textos inéditos, de 24 pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, completados, como cereja de bolo, com um conto paradigmático de Moacyr Scliar, O nascimento de um cidadão. A obra se divide em quatro partes, Pré-história da Cidadania, Alicerces da Cidadania, Desenvolvimento da Cidadania e Cidadania no Brasil. Os textos não guardam unidade conceitual nem se dispõem como capítulos encadeados. A unidade se dá pelo método de organização, com ênfase na História social.
         Na primeira parte, os textos trazem informações e análises sobre o processo de desenvolvimento dos direitos das gentes quando a noção de cidadania, como a entendemos hoje, sequer existia. Pinsky remonta aos tempos bíblicos para extrair lições de uma época marcada pela desigualdade social, mas que tinha em seus profetas indicações sobre cuidado com o próximo como sinal de humanidade. Os artigos seguintes tratam da cidadania no mundo grego, romano, nos primeiros séculos do cristianismo, até a chegada ao Renascimento. Eduardo Hoornaert, em “As Comunidades Cristãs dos Primeiros Séculos”, ajuda a redefinir a importância do cristianismo no campo das conquistas sociais, dando a ele a real dimensão de sua funcionalidade, como utopia prática, que, muito mais que se apoiar em mártires e santos, se firmou frente ao período clássico por ampliar a cidadania de grupos que viviam no submundo romano.
         Na segunda parte, são estudadas as três revoluções que estão na base da sociedade ocidental: a Inglesa, a Francesa e a Americana, tida pelos historiadores como tradução na prática social das idéias gestadas na Europa. O trabalho de Leandro Karnal — “Estados Unidos, Liberdade e Cidadania” — é iluminador tanto dos aspectos simbólicos dos textos fundadores e das lutas de origem da sociedade americana, passando pela comparação com o modelo estético da Grécia clássica impresso nas construções da capital americana, chegando até os paradoxos gerados pela forma peculiar de construção da cidadania nos EUA. O autor chama atenção para os laços que ainda hoje unem os presidentes americanos ao Mayflower fundante, fazendo deles ‘‘homens de fronteira, empresários de sucesso’’ ou arremedos de heróis. Não deixa de ser adequada para os dias de hoje a advertência final do artigo, escrito antes da invasão do Iraque: ‘‘Assim constrói-se um cidadão que se orgulha do seu país, não apenas porque seu país é forte, rico e poderoso, mas porque é único universo de significação que ele realmente vê’’.
         Na terceira parte, a mais conceitual da obra, são tratados temas que foram se agregando à trajetória de desenvolvimento da cidadania. Leandro Konder avalia a importância das idéias socialistas, analisando movimentos como o anarquismo, o marxismo e o culto à ciência, ancorados em momentos vividos, como a Comuna de Paris, a constituição dos partidos de massa e a participação das mulheres. Esses temas voltam em outros artigos, que têm como personagens coletivos as minorias étnicas, religiosas e sociais, a luta pela igualdade feminina, as reivindicações trabalhistas e a incorporação das demandas ambientais no ‘‘pacote’’ da cidadania. Rodolfo Konder traz uma contribuição inovadora ao estudar o papel da Anistia Internacional na defesa e difusão das idéias dos direitos humanos, a começar pelo mais basilar de todos, o direito à vida, transformando uma aparente discussão ética numa das bandeiras políticas mais importantes dos tempos atuais.
         A quarta parte, é composta de ensaios que retomam todos os temas anteriores, agora voltados especificamente para a compreensão da realidade brasileira. Os artigos trazem as rotas da história da cidadania brasileira a partir de lutas: dos indígenas, negros, mulheres e trabalhadores. Desfazendo os mitos de uma nação que assistiu pacificamente às maiores violências contra seu povo, os trabalhos de Mércio Gomes, Flávio dos Santos Gomes, Tânia de Luca e Maria Ligia Quartim de Morais mostram a dimensão de construção e conflito que está na base da cidadania. O artigo do advogado Rubem Naves traz para o debate uma nova área, a do terceiro setor, como novo ator que se incorpora no processo de ampliação dos direitos da sociedade brasileira.
Um excelente livro de fundo, História da Cidadania se torna ainda melhor se lido em conjunto com o erudito e provocante Cidadania no Brasil, de José Murilo de Carvalho. Este mais concentrado no caso brasileiro e no ‘‘longo caminho’’ de constituição de nossa cidadania, se encerra com um alerta que poderia muito bem sintetizar as duas obras: nossa frágil democracia não sobreviverá muito tempo ao câncer da desigualdade que ainda corrói o Brasil.
         Entender a história da cidadania não é apenas uma forma de se comprometer com um futuro melhor em termos de generosidade humanística. Trata-se de garantir, em termos humanos, o futuro possível. E a história mostrou que ele nunca chegou sem luta, dado por benesse dos detentores do poder e da grana. O movimento dos sem-terra que o diga. Essa história, com a participação ou omissão de todos, está sendo escrita para registro de nossas capacidades e vergonhas.