História da cidadania - Uma trilha de lágrimas
Jornal A Tarde


Resenha escrita por Emiliano José publicada no jornal A Tarde, de Salvador, no site www.emilianojose.com.br em 12 de julho de 2003.
 
História da cidadania - Uma trilha de lágrimas
            Essa história começou com Isaías e Amós, por volta do século VIII antes de Cristo. Os dois grandes profetas sociais são os precursores da cidadania, embora seja sempre arriscado tentar voltar ao passado com conceitos de nosso tempo. Isaías bradava contra os opressores - “Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem. Respeitai o direito, protegei o oprimido. Fazei justiça ao órfão, defendei a viúva”. Sua pregação impressionou Jerusalém entre 740 e 701. Falava sempre como porta-voz de Deus.
             Amós pregou na Samaria e no decorrer de um único ano, provavelmente 745 a.C. Tinha, como Isaías, um sentimento profundo de justiça. “Portanto, já que explorais o pobre e lhe exigís tributo de trigo, edificareis casas de pedra, porém não habitareis nelas, plantareis as mais excelentes vinhas, porém não bebereis do seu vinho. Porque eu conheço as vossas inúmeras transgressões e os vossos grandes pecados: atacais o justo, aceitais subornos e rejeitais os pobres à sua porta”.
            Jaime Pinsky, autor do texto sobre os profetas e coordenador, ao lado de Carla Pinsky, dessa extraordinária coletânea em torno da história da cidadania, afirma que os dois profetas sociais fizeram ecoar com intensidade pela primeira vez, desde que o mundo era mundo, o grito dos oprimidos e dos injustiçados. Os dois, ao criticarem a ordem existente e proporem uma nova sociedade, “cortam suas amarras e partem para mar aberto. Desistem do deus do templo, de qualquer templo, e criam o deus da cidadania”.
            A construção da cidadania podia ser definida como uma trilha de lágrimas, que é como o professor Leandro Karnal, chefe do Departamento de História da Unicamp, resume a tragédia indígena nos EUA, sobretudo após a independência. Não é possível afirmar que esse processo terminou. Nem para os índios, nem para a maioria da humanidade. É “uma história que ainda se escreve”.
            Os coordenadores foram felizes na estruturação do livro, ao começar com os profetas e terminar com um conciso e brilhante conto de Moacyr Scliar – “O nascimento de um cidadão” –, espécie de morte e vida severina urbana. Na morte, suave, é que José da Silva irá se descobrir cidadão.
 
            O livro, que já nasce obra de referência, tece o fio dessa história passo a passo, contando a sua pré-história, a construção dos alicerces e o desenvolvimento em plano mundial para, só então, chegar à cidadania no Brasil. O leitor, de cara, será alertado para não imaginar tanta democracia nas cidades-estado, onde havia inclusão e exclusão e conflitos internos de grande monta, como os que circunscreviam a vida das mulheres ao espaço doméstico, os que distinguiam velhos e jovens com prioridade para os primeiros e o principal deles, que dizia respeito à propriedade da terra.
            Tais conflitos, no entanto, não podiam ser resolvidos senão por mecanismos públicos, abertos ao conjunto dos proprietários, que eram os cidadãos. Aqui residiria a origem mais remota da política “como instrumento de tomada de decisões coletivas e de resolução de conflitos, e do Estado, que não se distinguia da comunidade, mas era sua própria expressão”. Roma, que merece um bem cuidado texto do professor da Unicamp Pedro Paulo Funari, é apontada como berço das modernas noções de cidadania e participação popular.
 
            Não fossem vários outros aspectos, a instituição do voto secreto tão somente bastaria para dar sustentação a essa conclusão sobre Roma. A Revolução Inglesa seria “indiscutível ponto de partida para o desenvolvimento dos direitos de cidadania”, segundo Marco Mondaini, professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Não haveria equívoco em se afirmar que a cidadania liberal resultante da Revolução Inglesa era excludente, diferenciadora de “cidadãos ativos” e “cidadãos passivos”, “cidadãos com posses” e “cidadãos sem posses”. Mas não se pode desconhecer terem sido os conceitos emanados dessa chamada cidadania liberal que garantiram que se rompesse com a figura do súdito, que tinha apenas e tão somente deveres a prestar. E seus fundamentos universais - todos são iguais perante a lei - traziam em si a necessidade histórica de um complemento fundamental: a inclusão dos despossuídos e o tratamento dos “iguais com igualdade” e dos “desiguais com desigualdade ”.
 
            A Revolução Americana carrega a característica de ter construído uma noção de cidadania que se torna “universal e redentora e deve submeter o mundo”. Trata-se de “uma cidadania inclusiva para alguns e excludente para muitos.” Os resultados dessa concepção, o mundo experimentou de modo trágico durante todo o século XX e especialmente nos dias de hoje, quando o Império americano decretou o fim da multipolaridade.
            A Revolução Francesa, ao estabelecer os direitos, que se pretendiam universais, da liberdade, da igualdade e da fraternidade, vai sintetizar, com eles “a natureza do novo cidadão e essas as palavras de ordem dos que se amotinaram contra as opressões das quais há séculos padeciam.” A Declaração dos Direitos do Homem, de 26 de agosto de 1789, que estabelece, em seu artigo primeiro, que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”, indica que “o novo homem que daí nasce é intrinsecamente um cidadão.” Leandro Konder dirá, no texto “Idéias que romperam fronteiras”, que o socialismo moderno não pode ser compreendido sem a Revolução Francesa. Para os socialistas, o caminho preferido era o das medidas que fortaleciam a cidadania “por meio de transformações sociais, numa política de massas.”
 
            Paul Singer, no texto “A Cidadania para todos”, fará um cuidadoso relato histórico das lutas da cidadania pelos seus direitos desde o século XVI até os dias atuais. Ele acentua que “a conquista de direitos sociais, em geral, nunca pode ser considerada definitiva, enquanto o antagonismo de classe permanecer e provocar reações dos setores mais conservadores da sociedade, que nunca se conformam com a concessão de direitos que, a seus olhos, são privilégios injustificados.” Fala na crise dos direitos sociais dos dias atuais e diz, ao final, que “a luta por direitos sociais se resume hoje à luta pela retomada do crescimento, que equivale à luta contra a hegemonia neoliberal, imposta pelo capital financeiro a toda a sociedade.”
 
            Na seqüência, a luta das mulheres pela cidadania – “uma longa trajetória ainda não completada”, a batalha das nações pela autodeterminação como instrumento de afirmação dos direitos sociais, a luta dos excluídos para se tornarem cidadãos mantendo suas identidades étnico-culturais, a luta da Anistia Internacional contra as torturas e perseguições contribuindo para a construção de uma cidadania universal e o exercício instigante de combinar qualidade de vida e desenvolvimento sustentável com a cidadania.
            Só após esse percurso é que se chega ao Brasil, discutindo, primeiro, qual o caminho para a constituição da cidadania indígena. Uma história de massacres, de violência, de exclusão desde o início dos tempos. Há um caminho longo pela frente para assegurar que o índio seja cidadão, sem que se desconheça que muitos passos já foram dados. Trata-se, agora, de assegurar “a garantia de suas terras, a consolidação de seu crescimento demográfico, a integração social e a participação política, com autonomia cultural, e ainda o fortalecimento de suas economias.”
            A luta dos quilombolas está no texto “Sonhando com a terra, construindo a cidadania”, de Flávio dos Santos Gomes, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A história dos quilombos pode ser entendida, para além do protesto escravo, como parte da saga dos negros pelo acesso, direito e manutenção da posse e uso da terra e a gestação de culturas originais no mundo rural. A novidade do texto de Gomes talvez esteja exatamente na proposta de incluir no debate sobre o problema agrário no Brasil a questão étnica, ainda não suficientemente tratada pelos movimentos sociais do campo.
            O texto sobre os Direitos Sociais no Brasil, de Tânia Regina de Luca, descreve e analisa as conquistas e sofrimentos dos trabalhadores brasileiros da proclamação da República aos dias de hoje, sobre os quais recorre à apreciação da socióloga Vera da Silva Telles, para quem é “quase impossível deixar de notar que, em terras brasileiras, o assim chamado neoliberalismo consegue a façanha de conferir título de modernidade ao que há de mais atrasado na sociedade brasileira, um privatismo selvagem e predatório, que faz do interesse privado a medida de todas as coisas, que recusa a alteridade e obstrui, por isso mesmo, a dimensão ética da vida social.”
            Maria Lygia Quartim de Moraes, professora de sociologia da Unicamp, produz um texto agradável e denso sobre a “Cidadania no feminino”, onde a opressão da mulher é dissecada. Saber que a mulher brasileira só teve a possibilidade do acesso à educação formal em 1827 chega a parecer absurdo. O mundo mudou e o Brasil também, mas nem sempre para melhor quando se fala das mulheres. Trabalhar, que pode parecer um indício de libertação, pode significar também acréscimo de jornada. As mulheres brasileiras atualmente são provedoras de mais de 75% dos domicílios, sendo as principais provedoras em uma entre cada três famílias. E em 96% dos lares é a mulher que realiza o trabalho doméstico.
            A professora da Unicamp Letícia Bicalho Canedo desenvolve a discussão sobre a trajetória, limitações e alcance do voto desde as eleições dos oficiais das Câmaras Municipais do Brasil Colônia até a Constituição de 1988, que “trouxe o direito de voto para o analfabeto e o fim de uma série de discriminações: a econômica (voto censitário), a racial (escravos), a sexual (mulheres), a cultural (analfabetos)”. E a introdução da urna eletrônica contribuiu “para que os eleitores fortalecessem a idéia da virtude do seu papel de eleger seus representantes.” E, além disso, “um maior número de eleitores se sentiu estimulado a votar, com redução dos votos nulos.”
 
            A cidadania ambiental também é discutida, e talvez o maior mérito do texto de Maurício Waldman, mestre em antropologia social pela Universidade de São Paulo, seja mostrar que os principais problemas ambientais no Brasil e no mundo localizam-se nas cidades, o ambiente de vida por excelência da era contemporânea. Apenas 12 regiões metropolitanas brasileiras congregam 33% da população do Brasil. A pobreza urbana está concentrada majoritariamente nas grandes cidades. Há uma ocupação desordenada de áreas ambientalmente frágeis - beira de córregos, encostas íngremes, várzeas inundáveis e áreas de proteção de mananciais -, “que constituem a única alternativa para os excluídos do mercado residencial formal.”
            O texto de Rubens Naves, advogado e consultor de empresas, aborda as possibilidades do terceiro setor como instrumento de construção da cidadania. Do ponto de vista conceitual, parece cometer um equívoco grave logo na segunda página de seu texto, ao considerar que a política não é mais o caminho para o exercício dos direitos. Ele próprio, à frente, dirá, citando Claus Offe, que “a diminuição do Estado pode ser um risco para a democracia.” Naves defende que a interação do terceiro setor com o Estado se dá em três níveis principais - prestação de serviços, pressão política sobre o Estado e apoio, com sugestões e exemplos alternativos de ação. E diz esperar que as ONGs cumpram um papel transformador, “propondo novas formas de tornar as políticas públicas mais eficientes e capazes de abarcar os direitos de todos os brasileiros.”
 
            O conto de Moacyr Scliar? Cito só o fim, senão a graça acaba.
  “... Alguém se inclinou sobre ele, um policial. Que lhe perguntou:
  – Como é que está, cidadão? Dá para agüentar, cidadão? Isso ele não sabia. Nem tinha importância. Agora sabia quem era. Era um cidadão. Não tinha nome, mas tinha um título: cidadão. Ser cidadão, era para ele, o começo de tudo. Ou o fim de tudo. Seus olhos se fecharam. Mas seu rosto se abriu num sorriso. O último sorriso do desconhecido, o primeiro sorriso do cidadão.”


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