Mapa referencial da cidadania
Diário do Grande ABC - Cultura e Lazer – página 2


Resenha de João Mattos Coelho publicada no Diário do Grande ABC (Cultura e Lazer – página 2) em 18 de maio de 2003.
 
Mapa referencial da cidadania
Livro reúne 24 ensaios que mostram como se forma esse conceito fundamental ao longo da história
 
         Cidadania forma, ao lado de globalização, o par de palavras mais pronunciado, repetido e entendido de forma incorreta da atualidade. Mas o que é mesmo ser cidadão?, questiona o historiador Jaime Pinsky na introdução de História da Cidadania, um dos livros mais importantes e originais do ano (Contexto, 592 págs).
         “Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: é, em resumo, e direitos civis. É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação individual na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranqüila”, afirma Pinsky.
         A julgar por esta definição precisa do conceito, os brasileiros ainda estão longe de exercer de modo pleno seus direitos de cidadãos. Por isso mesmo é fundamental a leitura deste livro que reúne 24 ensaios originais de historiadores, economistas, filósofos, sociólogos, antropólogos, geógrafos, um advogado e até um pequeno e contundente conto para mapear o conceito. Aborda o assunto desde a Antigüidade, passando pela origem da noção de cidadania e as lutas por inclusão social ao longo da história, até chegar à discussão de como ela é exercida hoje. Tudo dentro de uma ótica brasileira e, segundo o historiador – sem falsa modéstia -, feito a partir de “um projeto ambicioso e inédito”.
         De fato, História da cidadania apresenta um enfoque pioneiro, ao mostrar como o conceito moderno de cidadania foi uma lenta e sofrida construção que surgiu com o capitalismo e a formação dos Estados nacionais, e ganhou aperfeiçoamentos em quatro revoluções (inglesa, norte-americana, francesa e industrial). “É muito diferente ser cidadão na Alemanha, nos Estados Unidos ou no Brasil, não apenas pelas regras que definem quem é ou não é titular da cidadania (por direito territorial ou de sangue), mas também pelos direitos e deveres distintos que caracterizam o cidadão em cada um dos Estados-nacionais contemporâneos”, diz Pinsky.
         A evolução da cidadania, historicamente, não é uniforme. Assim, convivem no mundo situações diversas e muitas vezes conflitantes. “Ainda há países em que os candidatos ao cargo de presidente devem pertencer a determinada religião (Menem se converteu ao catolicismo para poder governar a Argentina), outros em que nem filhos de imigrantes têm direito a voto, e por aí afora”, afirma o coordenador do livro. A cidadania, portanto, instaura-se a partir dos processos de lutas que culminaram na Declaração dos direitos Humanos, dos Estados Unidos, e na Revolução Francesa.
         Esses dois eventos romperam o princípio de legitimidade vigente, baseado nos deveres dos súditos, e passaram a estruturá-lo a partir dos direitos do cidadão. Desse momento em diante, todos os tipos de luta foram travados para que se ampliasse o conceito e a prática da cidadania e o mundo ocidental o ampliasse para mulheres, crianças, minorias nacionais, étnicas, sexuais e etárias. “Nesse sentido pode-se afirmar que, na sua acepção mais ampla, cidadania é a expressão concreta do exercício da democracia”, diz Pinsky.
         A proposta “foi organizar um livro de história social, no sentido de não fazer um estudo do passado pelo passado, muito menos do passado para justificar eventuais concepções pré-determinadas sobre o mundo atual. Queríamos, isso sim, estimular a produção de textos cuidadosamente pesquisados, mas que se propusessem a dialogar com o presente. Não é por acaso que os textos dão conta de um processo, um movimento lento, não linear, mas perceptível, que parte da inexistência de direitos cada vez mais amplos”.
         É provável que nesta postura esteja a raiz da incrível riqueza deste livro notável. Pinsky, dublê de editor e historiador, confessa que “sonhar com cidadania plena em uma sociedade pobre, em que o acesso aos bens e serviços é restrito, seja utópico”. Pinsky, no entanto, afirma que os avanços da cidadania, se têm a ver com a riqueza do país e a própria divisão de riquezas, dependem também da luta e das reivindicações, da ação concreta dos indivíduos: “ao clarificar essas questões, o livro quer participar da discussão sobre políticas públicas e privadas que podem afetar cada um de nós, na qualidade de cidadãos engajados. Afinal, a vida pode ser melhorada com medidas muito mais simples e baratas, ao alcance até de pequenas prefeituras, como proibição de venda de bebidas alcoólicas a partir de determinado horário, controle de ruídos, funcionamento de escolas como centros comunitários nos fins de semana, opções de lazer em bairros periféricos, estimulo às manifestações culturais das diferentes comunidades e muitas outras”.
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